O Cordel no contexto da música popular brasileira. Imaginar o Sujeito brasileiro e a Nação pela música popular



Rogério da Silva Lima

Universidade de Brasília/Rede Pesquisa e Ensino Centro-Oeste 3/Rede Pesquisa LER/Cátedra UNESCO/PUC-RJ/Grupo de Pesquisa Charles Morazé- UnB/CNPq/Centre Charles Morazé/Équipe F2DS-MSH-Paris
____________________________  

♦ O Popular Absorvido pela Sociedade do Grande Centro Urbano
♦ Literatura brasileira e cultura popular, literatura e cordel

♦ A música nordestina chega ao Rio de Janeiro

♦ Nordeste: Cordel, Repente Canção

♦ O bardo moderno e a tradição do cordel na Música Popular Brasileira




Índice


















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O texto que apresento faz parte da pesquisa que venho desenvolvendo intitulada O Brasil e a Imagem Cultural da Nação Vistos pelas Culturas Estrangeiras Transatlânticas. Especificamente, o que apresentarei na minha fala está circunscrito à etapa de estudo que tem como subtema: “A imagem do Brasil por intermédio da canção brasileira: pensar a nação pela música popular brasileira”.

O convite feito pelo CRLA-Archivos para que eu participasse da Journée d’Etudes Internationale – Literatura de Cordel et Littératures Populaires du Portugal et du Brésil é uma excelente oportunidade para a divulgação de resultados parciais dessa pesquisa que tem investigado a presença da tradição do Cordel no contexto da Música Popular Brasileira Contemporânea e sua aproximação com a Literatura brasileira. Especificamente, tenho buscado identificar um cantador brasileiro, moderno, continuador da tradição do cordel, no universo da Música Popular Brasileira Contemporânea. Em nossa pesquisa temos procurado aprofundar as investigações sobre as relações da canção popular brasileira com as formas literárias consideradas “obsoletas” como a poesia escrita tradicional.

O Popular absorvido pela sociedade do grande centro urbano

Na contramão da tradição literária nacional, é possível identificarmos no espaço criativo da Música Popular Brasileira Contemporânea o surgimento de uma poética rural/urbana, herdeira do Lundu canção brasileiro e da Modinha, que foram adaptados ao gosto nacional ao longo do tempo, que encontrou espaço fértil para o seu desenvolvimento na Música Popular Brasileira. O compositor Heitor Villa-Lobos foi um dos desenvolvedores dessa adaptação e aproximação entre a Modinha e o Lundu, conforme o exemplo de seu Lundu da Marquesa de Santos:

Minha flor idolatrada
Tudo em mim é negro e triste
Vive minh'alma arrasada Ó Titilha
Desde o dia em que partiste
Este castigo tremendo
já minh'alma não resiste, Ah!
Eu vou morrendo, morrendo
Desde o dia em que partiste
Tudo em mim é negro e triste
Vive minh'alma arrasada, Ó Titilha!
Desde o dia em que partiste
Tudo em mim é negro e triste
Este castigo tremendo, tremendo.

O Lundu canção permaneceu na cultura brasileira contemporânea, tendo diversos compositores, no correr do século XX, se aproximado desse gênero de canção, sejam eles dedicados à chamada música erudita como Heitor Villa-Lobos ou à música popular como o sambista e compositor Cartola com seu Lundu Ensaboa:

Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando
Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando
Tô lavando a minha roupa
Lá em casa estão me chamando Dondon
Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando
Os fio que é meu, que é meu
E que é dela
Rebenta a goela de tanto chorá
O rio tá seco, o sol não vem não
Vortemos pra casa
Chamando Dondon

Conforme anota Jairo Severiano em sua Uma história da música popular brasileira:

No final do século XIX, a modinha se democratizou e ganhou as ruas nas vozes dos cantores de serenatas. Esse período, em que ela viveu o seu momento de maior prestígio, estendeu-se por cerca de quarenta anos, a partir de 1870. Realizando, então, sem diminuição de seu teor romântico, a troca do acompanhamento pianístico pelo violonístico e a adoção do ritmo ternário, a modinha adquiriu uma caracterização bem mais brasileira e popular, o que lhe facilitaria o sucesso. Também simplificou sua grande variedade de planos, agora restritos, basicamente, à forma três estrofes ou à de estrofe e refrão.[1]

O poeta Catulo da Paixão Cearense, letrista de modinhas, foi a última grande figura da música popular a aparecer no século XIX, tornando-se nacionalmente conhecido por volta de 1900. Catulo tinha como colaborador na elaboração das suas modinhas o violonista João Pernambuco, que o orientava em assuntos relativos aos costumes populares, uma vez que o poeta nunca viveu no sertão nordestino. O poeta modernista Mário de Andrade o considerava “o maior criador de imagens da poesia brasileira”, ressaltando o espírito de brasilidade que caracterizava a sua obra e que também lhe garantia grande aceitação por parte do público do seu tempo.[2] Das modinhas compostas por Catulo a mais conhecida é Luar do sertão sendo também uma das mais famosas do cancioneiro popular brasileiro. O próprio Catulo reconhecia ser Luar do sertão a sua obra mais lembrada pelo público:

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Oh! que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Se a lua nasce por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata prateando a solidão
E a gente pega na viola que ponteia
E a canção é a Lua Cheia a nos nascer do coração

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Mas como é lindo ver depois pro entre o mato
Deslizar calmo regato transparente como um véu
No leito azul das suas águas murmurando
E por sua vez roubando as estrelas lá do céu

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão


O etnólogo Alceu Maynard Araújo registra em estudo sobre a Quadrilha, o Lundu dança e o Lundu canção que ocorreu um movimento inverso em relação a assimilação pelas classes sociais brasileiras dessas formas culturais de entretenimento. A Quadrilha migrou dos salões nobres para as camadas mais populares, num processo de proletarização desse gênero de dança. Com o Lundu dança e o Lundu canção o processo ocorreu no sentido contrário:

No Rio de Janeiro a Quadrilha teve grande voga, tão grande que logo se popularizou. Desceu as escadas dos palácios e hoje vive apenas no hinterland brasileiro, aparecendo por ocasião das festas juninas.
[...]
A quadrilha passou da classe alta, da nobreza para o povo. Fenômeno inverso aconteceu com o Lundu. Ele veio provavelmente da classe inferior, batuque do escravo, passou pelo espanhóis e portugueses que o aperfeiçoaram a seu modo não escondendo nunca sua origem vibrante, convulsiva; coreografia onde braços e pernas, enfim o corpo todo se agitam com aquele ênfase que só os povos primitivos sabem dar às suas danças porque em geral estas são oferendas aos seus deuses, são votivas ao seu panteão de seres sobrenaturais que requerem a posse de seus fieis através daquela convulsão total, somática e quando imitada por povos de outra cultura emprestam-lhe lubricidade, lascívia, sensualidade, como se vê no bolero ou no lundu carioca.

Lundu Canção, transformou-se para ter entrada nos salões. É a roupagem nova com o velho nome de Lundu. Agora é canção cheia de sarcasmo, onde a ironia está presente, a crítica escalpeladora é também graciosa. Foi tão usual que o Lundu se tornou declamatório em boa parte de sua crítica. Canto e declamação.
[...]
O Lundu resiste ainda às mais variadas influências do “progresso”, da industrialização. Nos dias que correm está presente nos picadeiros desses “circos de cavalinhos” que perambulam pelas cidades interioranas, cantando ao som do violão, criticando os costumes da época.[3]


Literatura brasileira e cultura popular, literatura e cordel

Segundo o crítico musical José Ramos Tinhorão a relação entre literatura brasileira e a Música Popular Brasileira existe desde 1728, ano da publicação da obra de Nuno Marques Pereira de título longuíssimo: Compêndio narrativo do peregrino da América, em que se tratam vários discursos espirituais, e morais, com muitas advertências, e documentos contra os abusos, que se acham introduzidos pela malícia diabólica no Estado do Brasil.

O Compêndio narrativo do peregrino da América, como é conhecida a obra, é o primeiro livro de ficção escrito no Brasil, em 1725, e publicado em 1728.[4] Nuno Marques Pereira é o primeiro autor a fazer uma relação dos instrumentos utilizados pelos negros, do segundo século da colonização, nos calundus. Os calundus eram folguedos que os negros afirmavam ser tradicionais nas suas terras de origem. Os instrumentos utilizados nesses festejos eram, segundo a descrição do peregrino da América: “tabaques, botijas, canzás, castanhetas, e pés de cabra”. Com o auxílio desses instrumentos os escravos produziam “música profana” que na opinião do peregrino não deveria ser permitida, pois ofendia a moral religiosa dos habitantes da colônia. Segundo Tinhorão, essa música que o peregrino considerava profana, desonesta e ofensiva a Deus já deveria ser o Lundu, por suas características humorísticas.

No que diz respeito à aproximação entre literatura popular e canção popular essa interação tem se processado por intermédio de diversos agentes culturais: escritores, romancistas, poetas, cantadores, compositores e cantores. A forma mais habitual dessa ligação costuma ocorrer pela via de uma das manifestações culturais brasileiras mais tradicionais que é a literatura de Cordel, na sua associação com a canção.

Consultando as entradas sobre a literatura de cordel encontramos a seguinte definição para o termo no E-dicionário de Termos Literários Carlos Ceia, cujo verbete é de autoria da professora Nely Novaes Coelho:

A literatura de cordel - poesia popular impressa em folhetos e vendida em feiras ou praças -, tal como é cultivada no Brasil até hoje (vésperas do Terceiro Milénio), teve origem em Portugal, onde por volta do séc. XVII se popularizaram as folhas volantes (ou folhas soltas) que eram vendidas por cegos nas feiras, ruas, praças ou em romarias, presas a um cordel ou barbante, para facilitar suas exposição aos interessados. Nessas folhas volantes, de impressão rudimentar, registravam-se factos históricos, poesia, cenas de teatro (como o de Gil Vicente), anedotas ou novelas tradicionais, como O Imperatriz Porcina, Princesa Magalona ou Carlos Magno, textos que eram memorizados e cantados pelos cegos que os vendiam. Essas folhas volantes lusitanas, por sua vez, tiveram origem no grande caudal da Literatura Oral, tal como se arraigou na Península Ibérica, onde se formou o velho Romanceiro peninsular. Desta fonte primeva, sairam inicialmente os pliegos volantes que circularam na Espanha desde fins do séc. XVI e, destes, as folhas volantes portuguesas. Ambas as formas tiveram, como antecessora, a littérature de colportage, pequenos libretos surgidos na França no início do séc. XVI, com popularização da imprensa. Eram folhetos impressos em papel de baixa qualidade, em cor cinza ou azul (daí o nome genérico de “Biblioteca Azul”). Seus textos eram velhos romances, cantigas, vidas edificantes, factos históricos... recolhidos da tradição oral e bastante simplificados em sua redacção.

Difundidos por toda a Europa, essa forma popular de literatura, chamada “de cordel”, foi transladada para o continente americano pela acção de seus descobridores espanhóis e portugueses, à medida em que se instalavam nas terras por eles conquistadas.


A música nordestina chega ao Rio de Janeiro

Em 1904 um novo tipo de música chegou à cidade do Rio de Janeiro. Pelas mãos do violonista e compositor João Teixeira Guimarães (1883-1947), o João Pernambuco, o centro urbano brasileiro descobriu a música nordestina. João Pernambuco trazia consigo um vasto conhecimento de cultura popular, adquirido na sua cidade natal, Jatobá, atual Petrolândia, e na cidade de Recife.[5] Conforme anota Jairo Severiano: “Sua escola foram as feiras livres, onde ouviu cantadores como Ignácio Catingueira, Mané do Riachão , Romano da Mãe D’Água e Ugulino Teixeira, e violeiros como Cirino da Guajurema, Cego Sinfrônio, Falcão das Queimadas, Manoel da Cabeceira, Bem-te-vi, Mandapolão e Serrador, todos autênticos artistas populares.”[6]

Nos passos de João Pernambuco outros músicos e compositores nordestinos tomaram a direção da cidade do Rio de Janeiro em busca de espaço como artistas e propagadores da sonoridade da música brasileira de extração nordestina: o baiano Dorival Caymmi (1914-2008), os pernambucanos Luiz Gonzaga (1912-1989) e Manézinho Araújo (Manoel Pereira de Araújo 1910-1993), criador e cantador de emboladas; e o paraibano Jackson do Pandeiro (1919-1982), quatro compositores e músicos da velha geração de pioneiros. A partir dos anos 1960 uma nova geração de músicos originários do nordeste brasileiro seguiria o caminho de Caymmi, Gonzaga e Jackson do Pandeiro: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Zé Ramalho, os Novos Baianos (Moraes Moreira, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, Dadi, Pepeu Gomes e Luiz Galvão), Lenine e Zeca Baleiro. Esse último da novíssima geração de nordestinos.

Com a chegada dessas gerações de músicos à cidade do Rio de Janeiro também chegaram novos ritmos musicais como o Baião, o Xote, o Xaxado (Luiz Gonzaga); o Coco e a Embolada (Jackson do Pandeiro) que traziam consigo uma sonoridade diferente e diversificada, e que também interferiram na formação da subjetividade do habitante do espaço urbano, acostumado com a música americana que era dominante nas classes média e alta brasileira nos anos 1920 e 1930.


Nordeste: Cordel, Repente, Canção

A Embolada foi um desses ritmos populares nordestinos que interferiram, de forma significativa, na subjetividade de homens e mulheres das metrópoles brasileiras. Conforme anota Jairo Severiano a Embolada é um

processo poético-musical praticado em várias manifestações folclóricas, como o coco e o desafio, a embolada adquiriu vida própria ao assumir as características de cantiga descritiva, de teor geralmente cômico-satírico, em que a letra é mais importante do que a melodia. Apresentando a forma estrofe-refrão e cantada em andamento rápido, utilizando recursos de aliteração e assonância. A embolada exige do intérprete dicção e fôlego extraordinários para não “tropeçar” nas palavras e se fazer entender com clareza.[7]

O cantores Caju e Castanha, pernambucanos, da cidade de Jaboatão dos Guararapes, formam uma das mais famosas duplas de emboladores da cena musical brasileira; sendo cultuada por compositores brasileiros como Lenine que os homenageia na sua canção A ponte/Embolada. A ponte/Embolada tem início com um trecho do depoimento de Caju e Castanha, ainda meninos, relatando para a cineasta brasileira Tânia Quaresma, em seu filme documentário Nordeste: Cordel, Repente, Canção (1975), o processo de criação dos dois e a surpresa que tiveram ao perceber que poderiam ganhar a vida cantando Emboladas. A canção de Lenine integra diversos elementos na sua construção. Esses elementos vão desde o ruído de conexão à internet produzido pelos antigos modems para linha telefônica analógica, à incorporação da própria Embolada cantada por Caju e Castanha:

Como é que faz pra lavar a roupa?
Vai na fonte, vai na fonte
Como é que faz pra raiar o dia?
No horizonte, no horizonte
Este lugar é uma maravilha
Mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte

A ponte não é de concreto,
Não é de ferro, não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento

A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento

A ponte nem tem que sair do lugar
Aponte pra onde quiser
A ponte é o abraço do braço do mar com a mão da maré

A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento

Nagô... nagô... na Golden Gate

Entreguei-te
Meu peito jorrando meu leite
Mas no retrato-postal fiz um bilhete
No primeiro avião mandei-te
Coração dilacerado
De lá pra cá sem pernoite
De passaporte rasgado
Sem ter nada que me ajeite
Coqueiros varam varandas no
Empire State
Aceite
Minha canção hemisférica
A minha voz na voz da América
Cantei-te
Amei-te

O cantor e compositor pernambucano Lenine chegou à cidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1980, em busca de mais espaço e melhores condições de produção para sua música. Autor de um trabalho musical de características singulares retoma seguidas vezes, em suas canções, as suas raízes nordestinas. Uma dessas retomadas, pode ser conferida no Coco Candeeiro encantado, feita em parceria com o compositor Paulo Cesar Pinheiro, pertencente ao CD O dia em que faremos contato, de 1997:

Lá no sertão
Cabra macho não ajoelha
Nem faz parelha
Com quem é de traição
Puxa o facão, risca o chão
Que sai centelha
Porque tem vez
Que só mesmo a lei do cão...

É Lamp, é Lamp, é Lamp
É Lampião
Meu candeeiro encantado
Meu candeeiro encantado...

Enquanto a faca não sai
Toda vermelha
A cabroeira
Não dá sossego não
Revira bucho
Estripa corno, corta orelha
Quem nem já fez
Virgulino, o Capitão...

É Lamp, é Lamp, é Lamp
É Lampião
Meu candeeiro encantado
Meu candeeiro encantado...

Já foi-se o tempo
Do fuzil papo amarelo
Prá se bater
Com poder lá do sertão
Mas lampião disse
Que contra o flagelo
Tem que lutar
Com parabelo na mão...

É Lamp, é Lamp, é Lamp
É Lampião
Meu candeeiro encantado
Meu candeeiro encantado
Meu candeeiro encantado...

Falta o cristão
Aprender com São Francisco
Falta tratar
O nordeste como o sul
Falta outra vez
Lampião, trovão, corisco
Falta feijão
Invés de mandacaru
Falei!...
Falta a nação
Acender seu candeeiro
Faltam chegar
Mais Gonzagas lá de Exú
Falta o Brasil
De Jackson do Pandeiro
Maculêlê, Carimbó
Maracatu...

É Lamp, é Lamp, é Lamp
É Lampião
Meu candeeiro encantado
Meu candeeiro encantado
Meu candeeiro encantado...


Nessa canção, o ouvinte, por meio da forma narrativa, é remetido ao cordel e ao cinema de Glauber Rocha, particularmente aos filmes Deus e o diabo na terra do sol e o Santo guerreiro contra o dragão da maldade que são incorporações do cordel à narrativa cinematográfica, assim como é também o filme A noite do espantalho (1973), de autoria do cineasta e compositor paulista Sérgio Ricardo. A letra da canção Candeeiro encantado narra o modus operandi dos cangaceiros de Lampião com seus inimigos e a necessidade de o Brasil aprender com a cultura nordestina. Nesta canção Lenine se aproxima também dos cantadores das feiras populares nordestinas e das composições de Sérgio Ricardo que têm grandes ligações com a cultura nordestina.

Nos anos 1990, a Embolada ressurgiu na produção de grupos de música contemporânea eletrônica, mesclado ao ritmo Drum and Bass, como é o caso da canção de domínio publico Embolada das meninas, adaptação da dupla Beija-Flor & Treme-Terra, remixada no CD o Discurso, de 1999, pelo compositor paulista Bruno E e também adaptada e gravada pela cantora baiana Daúde, com o nome de “Quatro meninas” em seu primeiro CD, Daúde, de 1995 :

Eu quero que você me diga o nome de 4 meninas
Eu quero que você me diga o nome de 4 meninas
Eu quero que você me diga o nome de 4 meninas

Diga Odete, Marinete, Rosinete e Orelina
É pra você me dizer o nome de 4 meninas
Eu vou lhe dizer agora o nome de 4 meninas
Se segure camarada no batido do pandeiro
Eu quero é cantar maneiro é no coco da embolada
Isso aí é minha parada cantar coco é minha sina
Poeta não combina você fala e não promete
Odete, Marinete, Rosinete e Orelina

Taí se eu não cantei o nome das 4 meninas
E agora pra me dizer o nome de 8 meninas
Eu tenho que lhe dizer o nome de 8 meninas
Se eu não disser agora o nome de 8 meninas
Se você me arretar eu falo no nome de 100
Que eu não perco pra ninguém na profissão de cantar
Eu quero te avisar a poesia tu combina
Mulher da perna fina eu engano com chiclete

Digo Odete, Marinete, Rosinete e Orelina, Benice, Berenice,
Creonice e Olindrina, tá aí se eu não cantei
O nome de 8 meninas
[...]

Na canção Vô imbolá, dedicada aos compositores Selma do Coco, Cachimbinho e Geraldo Mousinho, o compositor maranhense Zeca Baleiro segue os passos do compositor e cantor paraibano Jackson do Pandeiro.

imbola vô imbolá
eu quero ver rebola bola
você diz que dá na bola
na bola você não dá

quando eu nasci era um dia amarelo
já fui pedindo chinelo
rede café caramelo
o meu pai cuspiu farelo
minha mãe quis enjoar
meu pai falou mais um bezerro desmamido
meu deus que será bandido
soldado doido varrido
milionário desvalido
padre ou cantor popular
nem frank zappa nem jackson do pandeiro
lobo bom e mau cordeiro
mais metade que inteiro
me chamei zeca baleiro
pra melhor me apresentar
nasci danado pra prender vida com clips
ver a lua além do eclipse
já passei por bad trips
mas agora o que eu quero
é o escuro afugentar
faz uma cara que se deu essa empreitada
hoje a vida é embolada
bola pra arquibancada
rebolei bolei e nada
da vida desimbolá

Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Você disse que dá na bola
Na bola você não dá

Vô imbolá (Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)

Eu quero ver rebola bola
Você disse que dá na bola
Na bola você não dá

Imbola imbola
rebimbela carambola manivela radiola
Nessa imbolada quem não bole com a rima
Tem que comprar matéria-prima para si manifestá

Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Você disse que dá na bola
Na bola você não dá

Vô imbolá (Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)

Eu quero ver rebola bola
Você disse que dá na bola
Na bola você não dá

vô imbolá minha farra
minha guitarra meu riff
bob dylan banda de pife
luiz gonzaga jimmy cliff
poesia não tem dono
alegria não tem grife
quando eu tiver cacife
vou-me embora pro recife
que lá tem um sol maneiro
foi falando brasileiro
que aprendi a imbolá

eu vou pra lua (Coro)
eu vou pegar um aeroplano
eu vou pra lua (Coro)
saturno marte urano
eu vou pra lua (Coro)
lá tem mais calor humano
eu vou pra lua (Coro)
que o cinema americano
Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Imbola vou imbolá
Eu quero ver rebola bola
Você disse que dá na bola
Na bola você não dá

Vô imbolá (Refrão)

Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)
Eu quero ver rebola bola
Vô imbolá (Coro/Refrão)

Eu quero ver rebola bola
Você disse que dá na bola
Na bola você não dá
Eu vou, eu vou vender a minha van
Eu vou, eu vou vender a minha van
Eu vou, eu vou vender a minha, vender a minha van,
minha vã filosofia.

Na trilha sonora feita para a peça Corsário do Rei, 1985, de Augusto Boal, os compositores Chico Buarque e Edu Lobo incluíram a embolada Verdadeira embolada:

A verdade que se preza
É fiel que nem um cão
A de César é de César
A de Cristo é do cristão
A mentira anda na feira
Vive armando confusão
Cheia de perfume, rebolando na ladeira
De mão em mão

A mentira e a verdade
São as donas da razão
Brigam na maternidade
Quando chega Salomão
A razão pela metade
Vai cortar com seu facão
Vendo que a mentira chora e pede piedade
Dá-lhe a razão

Na realidade
Pouca verdade
Tem no cordel da história
No meio da linha
Quem escrevinha
Muda o que lhe convém
E não admira
Tanta mentira
Na estação da Glória
Claro que a verdade
Paga a passagem
E a outra pega o trem

A mentira, me acredite
Com a verdade vai casar
Se disfarça de palpite
Pra verdade enfeitiçar
Todo mundo quer convite
A capela vai rachar
Pra ver a verdade se mordendo de apetite
Ao pé do altar

Na verdade cresce a ira
A mentira é só desdém
A verdade faz a mira
A mentira diz amém
A verdade quando atira
O cartucho vai e vem
A verdade é que no bucho
De toda mentira
Verdade tem


De 1913, ano da criação por João Pernambuco do bloco carnavalesco conhecido como Grupo Caxangá, até os anos 1950, o Rio de Janeiro acolheu com sucesso a música nordestina. Luiz Gonzaga levou na sua bagagem o Baião, Dorival Caymmi o Samba-Baiano, Jackson do Pandeiro carregou consigo o Coco e o Samba-Coco para o Rio de Janeiro. Na sua canção Coco social, Jackson do Pandeiro retrata aceitação do ritmo nordestino pela sociedade carioca.

Ele é pernambucano, do canavial
Veio pro salão, é social. (coro-repete)
Madame na boate fica solfejando
Ao som da champanhota diz o coco é bom
O musicista toca sem sair do tom
Toda gente bem fica admirando
Disse o criminalista: esse coco mata
É super bizantino diz o general
Jacinto de Thormes na pena não dorme
E diz o coco é bom, é social. (bis)
Ele é pernambucano, do canavial....(coro-repete)
O diplomata canta baixo na surdina
O financista gosta e faz anotação
Banqueiro financia, pois vale um milhão
Diz a dama de preto, é dança granfina
Jurista de renome aconselha o povo
O almirante diz: ele é nacional
Ibrahim Sued esforço não mede
E diz o coco é bom; é social. (bis)
Ele é pernambucano, do canavial....(coro-repete)

O coco, conforme anota Jairo Severiano:
[...] é uma das danças mais populares do Norte e do Nordeste brasileiros. De possível origem africano-ameríndia, nasceu no interior, nas cercanias das usinas açucareiras, deslocando-se depois para o litoral, onde é dançada com os pares volteando, batendo palmas e se dando umbigadas. Há muitas formas de coco – coco agalopado, coco bingolê, coco-de-praia, coco-catolé, coco-ganzá, coco-desafio, coco-de-roda e outros mais - , ocorrendo as variações algumas vezes em razão da região onde é praticado. Musicalmente, há sempre um tirador-de-coco, ou coqueiro, que entoa versos respondidos pelo coro. Também obedecendo à forma estrofe-refrão – ou seja, refrões que se repetem intercalados por segundas-partes – e adotando os compassos 2/4 e 4/4, o coco cantiga, que os nordestinos difundiram no Sul na década de 1920, tem muito a ver com o chamado coco-embolada, cujo processo poético-musical identifica-se com a própria embolada. A diferença é que nos terreiros as estrofes são geralmente improvisadas.[8]

O Coco é a dança dos extratos mais pobres da população nordestina, dos sem fortuna, dos que possuem apenas as palmas das mãos para dar ritmo, para suprir a falta do instrumento musical. O pesquisador Alceu Maynard Araújo ao descrever a dança registra que o canto do coco é acompanhado pelo:

bater de palmas, porém palmas com as mãos encovadas para que a batida seja mais grave, assemelhando-se mesmo ao ruído do quebrar de um coco (coco nucifera), tão abundante no Estado de Alagoas, donde parece ser originária esta dança afro-ameríndia. [...] Em quase todas as rodas de coco das quais participamos ou a que apenas assistimos no Estado de Alagoas, infalivelmente ouvia-se:

É Lampi, é Lampi, é Lampi,
é Lampi, é Lampião
meu nome é Virgulino
apilido, é Lampião
Papai me dê dinheiro
prá comprá um cinturão,
que a vida de um soltero
é andá mais Lampião.[9]

Nos anos 1990, Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo e da Embolada, foi redescoberto por uma nova geração de compositores e poetas que o reintegrou no circuito musical e cultural nacional. O compositor Lenine homenageou o Rei do Ritmo com a canção Jack soul brasileiro. A canção de Lenine alcançou grande repercussão, provocando no centro urbano a redescoberta do ritmo do Coco e da importância de Jackson do Pandeiro para a Música Popular Brasileira, por conta da sua influência, principalmente no samba. Este processo de redescoberta fez com que jovens músicos que reinterpretassem e sampleassem várias canções suas:

Jack Soul Brasileiro
E que o som do pandeiro
É certeiro e tem direção
Já que subi nesse ringue
E o país do swing
É o país da contradição
Eu canto pro rei da levada
Na lei da embolada
Na língua da percussão
A dança mulango dengo
A ginga do mango lengo
É o charme dessa nação
Quem foi que fez o samba embolar ?
E quem foi que fez o coco sambar ?
Quem foi que fez a ema gemer na boa ?
E quem foi que fez do coco um cocar ?
E quem foi que deixou o oco no lugar ?
E que foi que fez o sapo cantor de lagoa ?
Diz aí Tião ?
Vai Tião! (oi)
Fostes ? (fui)
Compraste ? (comprei)
Pagaste ? (paguei)
Me diz quanto foi ? (foi 500 réis)
Me diz quanto foi ? (foi 500 réis)
Jack Soul Brasileiro do tempero
Do batuque, do truque, do picadeiro e do pandeiro
E do repique, do pique do funk rock
Do toque da platinela
Do samba na passarela
Dessa alma brasileira
Despencando na ladeira
Na zoeira da banguela
Eu só ponho o Bebop no meu samba
Quando o tio Sam pegar no tamborim
Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba
Quando ele entender que o samba não é rumba
Aí eu vou misturar, Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba, e o meu samba vai ficar assim
Ah ema gemeu......
Aaaaah ema gemeu!

Seguindo esse embalo o Coco alçou vôo e cruzou o Atlântico, migrando para a Europa da cena da música eletrônica. Num trabalho de difusão de ritmos regionais brasileiros a cantora brasileira Viviane Godoy desenvolveu na cidade de Amsterdam, Holanda, juntamente com o músico inglês DJ Graham B e o produtor e músico holandês Alain Eskinasi, o Projeto Electro Coco; um dos cocos gravados por esse projeto é Coco do mundo, inédito de Zeca Baleiro:

Eu vou cantar um coco
No coco ninguém me ganha
Eu vou cantar um coco
No coco ninguém me ganha
Vou mostra minha façanha
Vem no coco balançar
Eu vou cantar um coco
No coco ninguém me ganha
Eu vou cantar um coco
No coco ninguém me ganha
Vou mostra minha façanha
Vem no coco balançar
Vou ligar tudo
mesmo que tudo desligues
Meu nome é Nelson Rodrigues
My name is Orson Welles
Não deixo élles por élles
Quero coco e não desisto
O pastor virou doleiro
Dinheiro virou cultura
poesia virou salário
Vulgaridade receita
Deus me livre dessa seita
Cujo deus é feio e triste
Se o Belo ainda existe
o belo quero procurar
Outono, verão, inverno
O mundo virou um inferno
Um diabo pós-moderno
Haja fogo prá queimar
Eu vou cantar um coco
No coco ninguém me ganha
Vou mostra minha façanha
Vem no coco balançar
No coco ninguém me ganha
Vou mostra minha façanha
Vem no coco balançar
Roda mundo gira gira
Giramundo roda roda
Quem tem sede bebe soda
O assunto da moda é fome
Boca da noite não come
Perna de mesa não anda
Dança de roda é ciranda
O mar é maior que o rio
O mundo é tão vasto
Imenso deserto pasto
Se mais perto mais me afasto
Quanto mais cheio vazio
Eu vou cantar um coco
No coco ninguém me ganha
Vou mostra minha façanha
Vem no coco balançar
Eu vou cantar um coco
No coco ninguém me ganha
Vou mostra minha façanha
Vem no coco balançar
Nu da cintura pra cima
só visto a calça da rima
só quero o que me anima
O imã que me atraia
O fogo que me atice
Uma vez meu pai me disse
Meu filho a vida
é um grande coco sul de misse
Alucinação de Alice
pernas de Cyd Charisse
procurando Fred Astaire
Ranquei o toco no fuá do balancê
só sendo loco pr’esse coco enjeitar
Segura o coco pega o coco deixa o troco
Da vida eu não quero pouco
vem no coco balançar
Ranquei o toco no fuá do balancê
só sendo loco pr’esse coco enjeitar
Segura o coco pega o coco deixa o troco
Da vida eu não quero pouco
vem no coco balançar

O bardo moderno e a tradição do cordel na Música Popular Brasileira

Não podemos falar apenas de um único cantor moderno que tenha incorporado a tradição narrativa do cordel às suas canções. Essa impossibilidade é instaurada a partir da constatação de que diversos compositores incorporaram elementos do cordel e/ou da cultura popular às suas criações musicais. Num rápido levantamento feito pelo poeta Marcos Mairton, para seu blog Cordel para se cantar, o autor elenca:

inúmeros exemplos de músicas que utilizam os versos de cordel em sua letra. O próprio Genildo Costa gravou músicas como Meu Brasil de canto a canto, com letra de Antonio Francisco, em “dez pés em quadrão”, e Baixo assu, de Crispiniano Neto, um espetáculo de martelo agalopado. O martelo agalopado é encontrado também na voz de Elba Ramalho, quando gravou os versos de Ivanildo Vilanova, Imagine o Brasil ser dividido e o Nordeste ficar independente, e na voz de Zé Ramalho e Amelinha em Mulher nova bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor. De Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga gravou A triste partida, e Fagner gravou Vaca estrela e o boi fubá.[10]

À lista de Mairton é possível acrescentar nomes como o do grupo Sheik Tosado que faz a curiosa associação do rock hard core com o repente nordestino em sua canção Repente envenenado:

Eu sou apenas um pedaço do universo
e tô aqui cantando verso para você se amarrar
O povo todo só pensava no progresso
E esqueceu que o resto ainda está pra começar
Sol levantou, Brasil acordou
Ficha na vitrola que é pra tocar na caixola
Sons que são vitrine irresistível
De um país marcado e de corpo caído
Se o meu canto é forte dou um eco no país
Brasil swing, sangue por aqui
Conceito armorial
A vida se torna algo experimental
Dentro do click e sem sair do tempo
Fazendo batuque, sampleando o que não penso
Palavras vulgares de uma língua chula
Corrupção, contravenção, desfalque, entretenimento
Ei menino o papangú
quer te pegar

À lista de cantadores é possível acrescentar também Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Chico César entre tantos outros. Fazemos aqui um destaque especial para o compositor e cantor Zé Ramalho. Na obra de Zé Ramalho podemos encontrar composições que incorporam diretamente o cordel na sua construção, como as canções A peleja de Zé Limeira no final do segundo milênio; A terceira lâmina; além da canção Admirável gado novo, uma das composições mais belas, dramáticas e marcantes da Música Popular Brasileira produzida pela geração de artistas nordestinos que chegaram aos grandes centros urbanos do sul do país na década de 1970. A canção Admirável gado novo ganhou um bela versão acústica no CD 20 anos de antologia acústica, no qual Zé Ramalho comemorou 20 anos de carreira artística:

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal
E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou!
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam esta vida numa cela
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível,
Não voam, nem se pode flutuar
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!

Na esteira de Zé Ramalho temos o compositor baiano Gilberto Gil que, ligado às tradições do repente nordestino e ao cordel, produziu uma releitura da cultura regional e suas relações e influências sofridas diante das transformações tecnológicas pelas quais passa o país e a Região Nordeste. Em 2008, Gilberto Gil compôs o cordel da era da internet cujo título é Banda larga cordel. A canção Banda larga cordel retrata a transformação do sertão imposta pela chegada do computador, internet e os novos hábitos que ele trouxe, da mesma forma que o rádio impôs uma nova forma de percepção do mundo.

Pôs na boca, provou, cuspiu
É amargo, não sabe o que perdeu
Tem um gosto de fel, raiz amarga
Quem não vem no cordel da banda larga
Vai viver sem saber que mundo é o seu
Mundo todo na ampla discussão
O neuro-cientista, o economista
Opinião de alguém que está na pista
Opinião de alguém fora da lista
Opinião de alguém que diz que não
Uma banda da banda é umbanda
Outra banda da banda é cristã
Outra banda da banda é kabala
Outra banda da banda é alcorão
E então, e então, são quantas bandas?
Tantas quantas pedir meu coração
E o meu coração pediu assim, só
Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom
Ou se alarga essa banda e a banda anda
Mais ligeiro pras bandas do sertão
Ou então não, não adianta nada
Banda vai, banda fica abandonada
Deixada para outra encarnação
Rio Grande do Sul, Germania
Africano-ameríndio Maranhão
Banda larga mais demografizada
Ou então não, não adianta nada
Os problemas não terão solução
Piraí, Piraí, Piraí
Piraí bandalargou-se um pouquinho
Piraí infoviabilizou
Os ares do município inteirinho
Com certeza a medida provocou
Um certo vento de redemoinho
Diabo de menino agora quer
Um i pod e um computador novinho
Certo é que o sertão quer virar mar
Certo é que o sertão quer navegar
No micro do menino internetinho
O Netinho, baiano e bom cantor
Ja faz tempo tornou-se um provedor - provedor de acesso
À grande rede www
Esse menino ainda vira um sábio
Contratado do Google, sim sinho
Diabo de menino internetinho
Sozinho vai descobrindo o caminho
O rádio fez assim com seu avô
Rodovia, hidrovia, ferrovia
E agora chegando a infovia
Pra alegria de todo o interior

Meu Brasil, meu Brasil bem brasileiro
O You Tube chegando aos seus grotões
Veredas do sertão, Guimarães Rosa,
Ilíadas, Lusíadas, Camões,

Rei Salomão no Alto Solimões,
O pé da planta, a baba da babosa.
Pôs na boca, provou, cuspiu
É amargo, não sabe o que perdeu
É amarga a missão, raiz amarga
Quem vai soltar balão na banda larga
É alguém que ainda não nasceu

Caso quiséssemos e/ou tivéssemos aqui que escolher um bardo moderno que incorporou a linguagem do cordel às suas composições esse bardo seria Zé Ramalho, e ao seu lado não hesitaríamos em colocar Elomar Figueira Mello, um dos mais surpreendentes compositores ligado às tradições medievais que o país já conheceu.

O cancioneiro de Elomar é vasto e se encontra disperso em uma discografia composta por dezessete títulos: um compacto simples, doze álbuns simples e quatro duplos. As canções de Elomar são portadoras de grande densidade poética. Suas canções são descritas pela pesquisadora Simone Guerreiro como produtos que constroem “poeticamente, a saudade de um sertão de antanho retratado num imaginário que, se não encontra total correspondência com a atual realidade, ameniza a aridez da nossa contemporaneidade. Algumas delas foram e são empregadas no ensino da literatura, a partir, por exemplo, do diálogo que o compositor faz com as cantigas medievais galego-portuguesas e com a tradição literária que tematizou o nordeste brasileiro e a seca.”[11]

A poética de Elomar é construída no dialeto catingueiro. O dialeto constitui variante regional da língua portuguesa. Esse processo de construção poética em variação dialetal pode ser verificado em todas as canções de Elomar. Como exemplo, citamos aqui a canção Parcelada:

Todo cantadô errante
trais nos peito u'a marzela
nas alma luá minguante
istrada e som de cancela
fonte que ficô distante
qui matava a sêde dela
e o coração mis discrente
dos amô da cantiguêra
ai o amô e u'a a serepente
êsse bicho morde a gente
vamo pois cantá parcela?
Eu sô candadô de côco
eu num canto parcela
parcela é feiticêra
eu côrro as leguas dela
chegano núm lugá
adonde teja ela
eu vô me adisculpano
e dano nas canela
daindá daindá daindá daindá
cüicí um candadô
distimido e valente
que mangava dos amô
e zombava a fé dos crente
mais um dia ele topô
nos batente dúa jinela
com o bicho do amô
mucama pomba e donzela
e o catadô aos pôco
foi se paxonano pruela
té que um dia ficô lôco
de tanto cantá parcela
e hoje vêve pela istrada
rismungano que a culpada
foi a mucama da jinela
daindá daindá daindá daindá
eu sô cantadô de côco
apis quem canta parcela
corre um risco São Francisco
morre doido cantan'ela
daindá daindá daindá daindá.

Simone Guerreiro ressalta que esse dialeto,

[...] embora apresente característica conservadora sofre contínuas transformações que o diferencia das formas normativas da língua. A sistematização do dialeto catingueiro por Elomar, ainda que objetive registrar as formas lingüísticas presentes na oralidade das regiões sertanejas representadas na obra, reveste-se numa escrita complexa e de difícil tradução pelo leitor citadino. Em algumas canções, vai sendo delineada essa dicção própria, resolvida em construções nas quais são interpostas, na voz de um personagem catingueiro, a língua sertaneja e a culta, porque tal construção harmoniza-se com a solução poética e musical dos versos de uma dada canção. Em Gabriela, por exemplo, opta-se pelo dialeto em “treis”, “irirmã”, “trumenta”, “dô”, enquanto permanece a forma normativa em “saudade”, “luar”, “sonhar”, “estrelas” etc. Em vista do exposto, fazem-se necessários outros esclarecimentos.

Para melhor compreensão da poética elomariana, é indispensável o conhecimento do corpo do texto e do sentido desse relação em relação à música, posto que a construção de um jogo de palavras, em consonância com as formas musicais propostas, altera possíveis sentidos de uma imagem, de uma metáfora. Exemplo disso são os registros da palavra lua com a nasalização presente na forma latina (luna), em luã (lua) ou lüá (luar), e da forma pronominal “você” que aparece também com as variantes “iancê” e “cê”. Já as formas monotongadas ocorrem abundantemente e são marcadas com acento que indica o apagamento da semivogal: “rêno” (reino), “lôva” (louva), “interô” (inteiro), “ferrêro” (ferreiro), “tropêro” (tropeiro), “cavalêro” (cavaleiro), “aruêra” (aroeira), “fera” (feira).[12]

Elomar é portador de uma evidente potência lírico-criativa que o coloca na condição de poeta do sertão. “É nas canções que o poeta, a partir de uma condensação lírica, constrói as metáforas mais significativas e combate o que chama de “não pensantismo”, ou seja, o aspecto nocivo da alienação. É por conta desse posicionamento que, em sua poética do sertão, hibridam-se o lírico, o dramático e o trágico para compor estética “realista” que coloca em cena o Estado do Sertão, esquecido, marginalizado, com sua cultura “de pés descalços, da precata sagabunda, do chapéu de couro, do vaqueiro, campônica, em falar de Elomar.” [13]

A força poética e dramática de Elomar pode ser percebida na canção Faviela pertencente à ópera de mesmo nome:
APARICIO:
A bença madiã
cabei de chegá
Do rêno das pedra
das banda de lá
Meu pai mandô qu’eu
vince aqui te salvá
Também queu subesse
das nova di cá
De nada isquecesse
de li preguntá
Qu’eu vince i vinhesse
sem mais delatá
Desse no qui desse
pr’eu li respostá
Tem pressa das botas
chapéu muntaria
Apois qui amiã
iantes de rompê o dia
Vai junto c'as frota
Lá pras Aligria
Pras bespa das boda
De Caçula e Fia.
Cum prijistença
Alembra qui é proxa
E já quaji às porta
A vinda do grande Rei
Jesus, o Nosso Redentô
Manda priguntá se a vida
Pr’essas banda miorô
É qui lá nos Impedrado
Nossa luta inté faiz dó
Se a fulô do gado
Do gado maió
Tomem das miunça
Se as cria vingo
Da roça só indaga
Das mendioca só
Plantada na incosta
Do mato-cipó.
Findo o priguntório
Já torno a istradá
D’onde é o lavatóro
Dex'eu me banhá...
A casa sutura
Sizuda as jinela
Vejo a camariã
De renda mais bela
Da sala à cunzinha
Só inda num vi ela
Prigunto pru via daquela donzela
Resposta madiã
Cadê Faviela?
Miã alma duviã
Qui hai arte do mal
Miã alma difiã
Margosa de fel
Só faiz sete lua
Qie li di o anel
Jurô qie era mia
Pru tinta e papel
MADRINHA:
Foi no minguante dessa passada
Tão de repente deu-se o sucesso
Qui já nem guento mais essa dô
Vino dos cunfim da istrada
Um mitrioso aqui posô
Se arribô de madrugada
E Faviela, ai de mim, levô!
APARÍCIO:
Tão linda, tão bela
Priciosa donzela
Malvada malunga
culpada foi ela
Jurô qie era mia
Pru tinta e papel
Foi imbora a ruiã
ingrata e infiel
A bença madiã
já torno a istradá
É tudo qu’eu tinha
Pra li priguntá
Miã alma difiã
Margosa de fel
Só faiz sete luã
Qui li di o anel
Jurô qie era mia
Pru tinta e papel
Foi imbora a ruiã
Ingrata e infiel.

A presença da tradição oral do cordel na Música Popular Brasileira Contemporânea reafirma a importância da cultura popular na construção do que podemos chamar de processo de representação do imaginário poético nacional. A mescla de manifestações culturais, hibridização entre as diversas culturas nacionais, rurais e urbanas, produzem e ajudam a delinear o sujeito brasileiro, com todas as suas particularidades, seus desejos, seu imaginário pessoal, sua compreensão muito singular do que venha a ser a realidade que o circunda e o envolve.




Bibliografia

  • ARAÚJO, Alceu Maynard. Cultura popular brasileira. São Paulo: Edições Melhoramentos/Instituto Nacional do Livro – MEC, 1973.

  • CASCUDO, Luis da Camara. Literatura oral no Brasil. 2a. ed. Rio: José Olympio/ Instituto Nacional do Livro – MEC, 1978.

  • CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. São Paulo: Edusp, 2003.

  • GUERREIRO, Simone. “Trilhas revistas do cancioneiro”, Caderno Notas e Letras in MELLO, Elomar Figueira. Elomar: cancioneiro. Belo Horizonte: DUO Editorial/Petrobrás, 2008.

  • FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO. Poetas do repente. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, 2008.

  • SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 2008.

  • TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998, Vol. 1.

  • ____________________. Cultura popular: temas e questões. São Paulo: Editora 34, 2006.

Sites Consultados
  • BUARQUE, Chico e LOBO, Edu. O corsário do rei.
    Url: http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=verdadei_85.htm. Consulta em 19/07/2010.



  • CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários.
    URL: http://www.edtl.
    com.pt/verbetes/literatura-de-cordel.html?format=html



  • JACKSON DO PANDEIRO. URL: http://jacksondopandeiro.digi.com.br/principl.htm. Consulta em 19/07/2010.

  • GODOY, Viviane. Electro coco. Url: http://www.vivianigodoy.com/



  • MAIRTON, Marcos. Cordel para se cantar.
    http://mundocordel.blogspot.com/p/cronologia-da-obra-de-marcos-mairton.html
Discografia consultada

  • BRUNO E. O discurso. SAMBALOCO RECORDS/TRAMA RECORDS, 2000.

  • GILBERTO GIL. Banda larga cordel. WARNER, 2008.

  • LENINE. O ano em que faremos contato. SONY BMG RCA, 1997.

  • PUTUMAYO. Brazilian groove. PUTUMAYO WORLD MUSIC, 2003

  • ZECA BALEIRO. Vô imbolá. MZA/UNIVERSAL MUSIC, 1999.










Notas

[1]. J. Severiano, Uma história da música popular brasileira, São Paulo, Editora 34, 2008, p. 50.

[2]. Ibidem, p. 68.

[3]. A. M. Araújo, Cultura popular brasileira, São Paulo, Edições Melhoramentos/Instituto Nacional do Livro – MEC, 1973, pp. 72-73.

[4]. J. R. Tinhorão, História social da música popular brasileira, São Paulo, Editora 34, 1998, vol. 1, p. 15.

[5]. J. Severiano, op. cit., p. 242.

[6]. Ibidem, p. 243.

[7]. Ibidem, p. 247.

[8]. Ibidem, p. 247.

[9]. A. M. Araújo, op. cit., pp. 81-82.

[11]. S. Guerreiro,  “Trilhas revistas do cancioneiro”, Caderno Notas e Letras in Mello, Elomar Figueira. Elomar: cancioneiro, Belo Horizonte, DUO Editorial/PETROBRAS, 2008, p. 28.

[12]. Ibidem, p. 28.

[13]. Ibidem, p. 29.