RODOLFO COELHO CAVALVANTE

UM CASO DE PELEJA  ENTRE ORALIDADE E ESCRITA

Martine Kunz


Martine KUNZ

Fonction: Professora de língua e literatura francesas do Departamento de

Letras estrangeiras da Universidade Federal do Ceará. Integrante do corpo

docente dos mestrados em Literatura Brasileira e História, da mesma

universidade.

Institution: Universidade Federal do Ceará

Formation: Mestre em Letras Modernas pela universidade de Paris IV-Sorbonne

com a dissertação "Couleurs et Parfums chez Baudelaire et Proust" (1975).

Doutora em Literatura Estrangeira pela universidade de Paris III-Sorbonne

Nouvelle com a tese "Rodolfo Coelho Cavalcante: poète populaire du Nord-Est

brésilien" (1982).

Domaine d'intérêt et de recherches: Literatura popular em verso do Nordeste

brasileiro




Grande texto oral impresso, segundo a expressão de Jerusa Pires Ferreira, a literatura de cordel encontra na oralidade sua força e vitalidade, uma oralidade presente nas fontes, na performance e na memória dos folhetos.

 

A ORALIDADE DAS FONTES

 

A produção de cordel nordestino inscreve-se, em parte, na continuidade da tradição literária ibérica em prosa e verso. Rapidamente, no entanto, adquire autonomia e afirma seu caráter autóctone.[1] Na verdade, os folhetos devem sua feição peculiar a toda uma tradição oral rica e diversificada que faz, até hoje, a resistência e a originalidade dessa produção popular. Vários estudiosos[2] evocam a influência da tradição africana das histórias cantadas ou contadas, os akpalô, introduzida pelos escravos no Nordeste brasileiro. E sobretudo, ao lado das narrações oriundas da tradição oral e da memória coletiva, sabemos que a literatura de cordel deve sua forma versificada e a maior parte de seus temas à cantoria, a poesia improvisada e cantada dos repentistas do Nordeste brasileiro. Tradução dessa filiação entre oralidade e escrita, o ciclo das pelejas no repertório temático da literatura de cordel remete à transcrição escrita, real ou imaginada, dos desafios entre cantadores. Assim, no princípio do folheto, temos o entrelace da voz e da escrita. Mas, tão logo é consignado no livrete, o texto pensa já na sua emancipação. A escrita é apenas uma pausa antes de ir ao encontro do folheteiro que vai cantar o texto para um auditório de possíveis compradores, ou do leitor alfabetizado que vai lê-lo para um público de ouvintes.

 

A ORALIDADE DA TRANSMISSÃO

 

Não se pode pensar o cordel independente de sua performance, sem a presença física e simultânea de quem diz e quem escuta. No Nordeste brasileiro, onde o analfabetismo permanece elevado e a cultura escrita não domina, a voz tem papel fundamental nas práticas culturais de origem popular. Nesse caso, a transmissão oral  resolve a contradição aparente de uma literatura impressa para um público analfabeto ou quase. De fato, o papel das rimas e do ritmo dos versos é menos estético do que funcional e mnemônico, e remete a uma produção literária mais ouvida do que lida. Por sua vez, o poeta de bancada mostra que conhece seu auditório, seu horizonte de expectativas, e a recepção futura dos versos determina o texto desde sua fase de elaboração. Autodidata ou escolarizado, mesmo que de forma incompleta, o autor, em regra geral, compõe o texto primeiro mentalmente, para depois traduzí-lo por escrito. Poeta e público afinam pelo mesmo diapasão e o folheto é o suporte de um texto que acontece alhures. O papel de má qualidade, perecível, deixa escapar os versos que vão ancorar-se na memória. Zumthor precisa que nas culturas de ritmo lento, o funcionamento da memória coletiva determina o modo de estruturação poética. Sendo assim, a consagração do texto passa pelo leitor-ouvinte que identifica nele a tradição que o sustenta.[3]

 

A ORALIDADE DA MEMÓRIA

 

A memória dos folhetos é uma memória em movimento. De um lado, a forma versificada da escrita facilita a memória poética, ritmada, rimada, e algumas histórias atravessam o tempo como protegidas por essa forma resistente, mineral, que retém e exalta ao mesmo tempo uma arte ameaçada. Por outro lado, não é uma memória fechada e monolítica, ela autoriza a passagem à prosa para continuar a história, quando as estrofes se perderam na opacidade do esquecimento. É uma memória dinâmica que permite a atualização, a reformulação. Não raro, uma mesma história é retomada por diversos poetas, ou um mesmo folheto circula sob varias versões orais. A escrita não fixa a história, sempre suscetível de novas adaptações. É uma memória em comunicação, uma memória compartilhada. As leituras coletivas que presenciamos nos anos oitenta, na feira de São Cristóvão no Rio de Janeiro, ou no sertão de Pernambuco e do Ceará, confirmam essa idéia de um texto que não se pertence, que através da leitura em voz alta dá-se ao outro. Um locutor lia, o público escutava, interferia, ria, contestava, acrescentava, enfim brincava. Como se o texto ainda estivesse por ser feito, ou como se, de algum modo, o público elaborasse seu próprio texto no decorrer da performance.

Uma vez ilustrada a primazia da oralidade na literatura de cordel, podemos assistir à peleja de Rodolfo Coelho Cavalcante. A nossa intenção é apresentar esse poeta popular do Nordeste brasileiro, autodidata, comunicador espontâneo com grande talento de improvisador e verve convincente, e mostrar como, a partir de um desejo de reconhecimento social e literário, esse poeta de literatura de cordel tornou-se um campo de batalha singular, onde escrita e oralidade enfrentaram-se.

 

Como falar da vida de Rodolfo Coelho Cavalcante? Uma das maneiras, eficaz e rápida, seria o resumo seco, cronológico, neutro, pouco adjetivado, com datas e números, filiação e endereço, uma ficha afinal. Daria mais ou menos isso:

Rodolfo Coelho Cavalcante nasceu em 12 de março de 1919, em Rio Largo, hoje Gustavo Paiva, Alagoas. Era filho de pais operários, Artur de Holanda Cavalcante e Maria Coelho Cavalcante. Radicado em Salvador desde 45, morava na rua Alvarenga Peixoto, 158, no bairro Liberdade, Salvador da Bahia. Morreu no dia 7 de outubro de 1986. Desde os seus 7 anos de idade tinha o dom da poesia, compondo poemas para reisados, cheganças e pastoris. Fugiu de casa aos 13 anos e percorreu o Nordeste, trabalhando em circos como palhaço e malabarista. Em 1939, casou-se e escreveu o primeiro folheto: A triste morte de Jovina; o segundo folheto apareceu em 1942: Os clamores do incêndio em Teresina e, segundo o testemunho do poeta quando vivo, teria versado mais de 1500 folhetos.

Em 1955, Rodolfo Cavalcante realizou em Salvador o I Congresso Nacional de Trovadores e Violeiros; em 1960, o segundo Congresso em São Paulo, e até a última hora, não parou de organizar congressos, festivais, concursos, feiras de literatura, e de publicar vários periódicos como O Trovador Popular, Serenata, A Voz do Trovador, O Grêmio, Brasil Poético, este último lançado em 1974 e tornado, em 1976, órgão oficial da Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel (O.B.P.L.C.), associação igualmente fundada pelo poeta e líder de sua classe.

Por mais preciosas que sejam essas informações, elas pouco nos dizem da personalidade do homem, não o tornam presente entre nós. Eu tive a felicidade de ouvir Rodolfo contar-me a história de sua vida. O relatório era incompleto mas desenvolto. Entre escapadas, digressões, desvios, retornos, é claro que se perdia um pouco da eficácia. Rodolfo escolhia, esquecia, ressuscitava o passado e evocava o presente, seguindo os meandros de sua memória, fragmentada, seletiva, mais emotiva do que mecânica, mais imaginativa do que fiel. Alguns acontecimentos me pareciam irreais, mas tanta minúcia no detalhe acabavam me convencendo. Tantas histórias, tanta pungência, tanta emoção. Parecia que a memória do coração e do corpo tinha escapado à decantação do tempo. Às vezes, era uma atitude introspectiva para responder às perguntas, outras vezes, a transfiguração era espantosa, ele falava como se estivesse declamando trovas frente a uma platéia numerosa: ria, chorava, embargava a voz contida pela emoção, ou a tornava mais aguda ou mais surda. O ritmo era apressado e a articulação vigorosa. O esforço de responder cedia sua vez ao prazer de dizer. A mecha de cabelos rebelde, o olhar vivo, o gesto amplo pareciam participar dessa performance.

Eu me lembrava, então, do bom folheteiro[4], do bom vendedor de folhetos que ele era. Rodolfo não cantava seus folhetos, mas fazia uma leitura dramática dos mesmos. Disse o poeta em entrevista de fevereiro de 1980: “Antigamente o trovador de cordel vivia exclusivamente dos seus livros, ele ia ter contatos com o público, ele ia pra feiras, cantava. Eu por exemplo transmitia a minha mensagem lendo os meus folhetos, fazia graça, assumia o papel do personagem no folheto, se chorasse, eu chorava; se gritasse, eu gritava. Tinha outros que cantavam. Hoje, o mercado não é como era. Hoje, nós vendemos mas sem ler, sem cantar os nossos folhetos. E olhe que o povo do interior só compra o folheto depois que a gente o canta ou lê em voz alta para a assistência:

Agora amáveis leitores

Eu vos dou a descrição

Do caso de Pernambuco

Que fez chamar a atenção

Dos habitantes de Flôres

Cujo epílogo de dores

Vos farei a narração.[5]

Na verdade, Rodolfo me contava tudo isso como se estivesse me vendendo um folheto. Sua vida me parecia uma coletânea de folhetos. Em clima de aventura, a infância desfilava

seu enredo engenhoso, a sua cascata de incidentes extraordinários, as emoções fortes e simples, a luta desigual, impiedosa, travada pelo herói para vencer as dificuldades. Era como nos romances de amor onde mil e uma adversidades desafiam os personagens. Voltava-me à memória uma estrofe do Suplício de um condenado de Expedito Sebastião da Silva:

Na estrada do porvir

No escuro tateamos

Não sabemos com certeza

Para onde nos botamos

Sabemos donde viemos

Mas não para onde vamos.

A vida de Rodolfo tem algo de exemplar. Como para insuflar coragem nos ouvintes, os desfechos mostram vitórias. Tudo é fora do comum, a começar pela miséria. A tragédia é rotineira. Entre as pisas da mãe e os chutes do pai, Rodolfo carrega água, vende frutas e tapioca, pega frete na feira, vende jornais e bilhetes de loteria, e se torna propagandista de lojas comerciais. A vida é ligeira. As pausas são patéticas. No carnaval de 1929, aos 10 anos, ele é raptado pelo Papa-Figo, atropelado e desenganado.

Mas o adolescente foge, pega a estrada, segue a via férrea, descansa nas praças- tudo o que no mundo liga, comunica, junta. Rodolfo dá uma boa mexida nos dados do destino. É um outro folheto.

Lá vem As proezas de João Grilo de João Martins de Athayde, ou As presepadas de Pedro Malasartes de Francisco Sales Arêda. O anti-herói, esperto, matreiro, pula das páginas. Eis o rapaz, infância alinhavada, adolescência desnutrida, andarilho matuto, dando prodigiosas voltas por cima, multiplicando piruetas e façanhas, revertendo situações, driblando a sabedoria dos poderosos, superando as vicissitudes da vida. É quando nasce o palhaço Pirulito no circo do Chocolate. E a roda do destino e dos anos gira no círculo do picadeiro. É o circo de Chocolate, de Cassimiro Coco ou o circo Strigni, nomes ressonantes, para onde convergem todas as artes. E Rodolfo não vai só montar esquetes, contar anedotas com a cara melada de branco, ele vai também ser autor de dramaturgia circense, manejar os bonecos falantes do teatro de mamulengo, aprender todas as magias, todos os truques e mesmo os segredos para fabricar remédios milagrosos, falsificar formicida e embalar pedras maravilhosas para dor de dentes.

É quando, de repente, o artista sai do círculo luminoso e mágico do picadeiro. A paixão é fulgurante e o casamento relâmpago com Hilda Moreira de Freitas. A pinta é de galã, a moral é de ferro. Não podemos aqui convocar o folheto de Jotabarros Lampião e Maria Bonita Tentados por Satanaz.

Aos 20 anos, Rodolfo funda uma família e dá os primeiros passos de sua carreira poética. Era em 1939, o itinerário já percorrido anunciava o talento versátil do poeta prolífico, e a determinação do futuro líder. Profusão, generosidade, coragem, força de trabalho, tenacidade, Rodolfo precisaria de tudo isso para realizar, em 1955, em Salvador, o Primeiro Congresso Nacional de Trovadores e Violeiros. Eno Teodoro Wanke[6] nos transmite alguns números que, se não fossem reais e portanto trágicos, poderiam provocar o riso e a incredulidade. “Depois de cinco anos de gestação e de cerca de sete meses de trabalho intenso, nos quais segundo seu discurso inaugural, Rodolfo escreveu 9.285 cartas, 732 telegramas, 58 reportagens, 1425 crônicas e noticiários, e “suportou” (sic) 91 serões noturnos, chegou, finalmente, o tão esperado acontecimento.”

Entrevistado em 1981 por Mark Curran[7], isto é, após 30 anos de atividade de líder de classe, eis a avaliação um tanto desabusada que Rodolfo fez desse tempo: “Fundei três entidades trovadorescas de âmbito nacional, quatro jornais a serviço dos trovadores. Realizei conferências no Nordeste e Sul do país, realizando cerca de 200 festivais, tudo no sentido de amparar essa classe dos Poetas da Literatura de Cordel. E, por mais incrível que pareça, o que houve de mais positivo até o momento foi a inauguração da Praça dos Trovadores, quando ali os repentistas ganham o pão para se manterem e os trovadores têm oportunidade de venderem os seus folhetos por preços que deixam uma boa margem de lucro.”

Embora o parecer não fosse muito entusiasta, Rodolfo nunca deixou de lutar em prol de seus irmãos trovadores; e nem o poeta deixou de produzir. Morreu atropelado, no dia 7 de outubro de 1986, a um quarteirão de sua casa, quando voltava da tipografia onde mandava fazer seus folhetos. Com ele, morreu o poeta que aflorava na criança, escrevendo versos para pastoris, reisados e cheganças, morreu a criança que se fazia poeta aos 11 anos, capaz de externar a dor da perda do avô; o propagandista de lojas comerciais, em Maceió, que aos doze anos já soltava a voz e a criatividade no meio da rua; o charlatão que tinha lábias para seduzir e convencer; o palhaço-ator-autor de dramaturgia circense; o improvisador oportunista, camelô, embolador da praça; o manejador de mamulengo com sua voz trocada. Com ele

morreram todas as falas, todas as lábias, todos os versos e paródias que almejavam conquistar todas as rodas, roda de feira, roda de circo, roda de gente. A voz tinha que ter corpo, tinha que ter peito, para ressoar aos ouvidos de todos.

Era esse mesmo fervor quando o poeta declamava seus versos na Praça Cairu. Tinha que comover, o patético imperava. Ouvir uma boa história contada com modulação na voz, drama no gesto, emoção no verso e no olho, é sempre bom. É uma catarse compartilhada, é brincadeira, é ritual. É criação coletiva. É triste ou divertido, mas é sempre bom.

Rodolfo na areia do picadeiro ou no asfalto da praça, no salão acadêmico, na redação do jornal, na sede de todas as instituições e até  no Palácio presidencial, Rodolfo ousava falar, qualquer que fosse o interlocutor. Sede de fama, sede de glória com certeza, mas também, e sobretudo, um prodigioso talento para comunicar. Autodidata, com escolaridade incompleta e apenas um curso de capacitação jornalística em 1959, Rodolfo se revelou um comunicador nato. Do dramalhão de circo à carta às autoridades, do papo de charlatão ao soneto lírico, do reisado ao texto jornalístico, há uma volúpia da palavra, uma avidez de texto, um entusiasmo grandiloqüente no discurso, uma versatilidade na escrita que se reflete na sua produção de folhetos.

1939: o primeiro folheto foi o pontapé inicial de uma vasta produção começada no Ceará, firmada no Piauí e levada a termo na Bahia. A triste morte de Jovina registrava um fait divers tão insólito quanto trágico. Na Praia de Iracema, em Fortaleza, tinham morrido afogados uma meretriz, um poeta, um sargento que tentara salvá-los e um soldado que também tentara e não teve outra sina. Em pouco tempo, dois milheiros de folhetos vendidos.

Em 1942, o futuro “Rei do Cordel”, assim o chamaria Jorge Amado, lançou Os clamores do incêndio em Teresina, também inspirado em fato real e de atualidade, revelando o repórter sensível e o poeta sempre de prontidão.

Foi o começo de um longo percurso, com ritmo intenso de produção. Incansável, Rodolfo escrevia, mandava imprimir, editava, administrava sua rede de revendedores e vendia, ele mesmo, seus cordéis, de terno e gravata na praça Cairu, junto ao Mercado Modelo, em Salvador. Apresentava-se como poeta da cidade, biógrafo, jornalista e moralista. Através da exaltação ou da sátira, do humor ou do patético, o “Maior Sortimento do Nordeste” como proclamava o autor, revelava o talento multifacetado do artista e a profunda intuição que tinha do mercado editorial. A multiplicidade dos registros estilísticos decorria da diversidade dos públicos visados. De antagonismos a contradições, a ambigüidade, por vezes, permanece. Rodolfo reivindicava uma dualidade de sua identidade poética. O poeta popular dobrava-se em poeta erudito: ele pertencia a várias academias literárias, cenáculos, associações literárias e chegou a publicar, por conta própria, obras de inspiração lírica e romântica, onde expressava seu ideal poético.

Quanto aos folhetos, o poeta os considerava poesia de sobrevivência: “A minha poesia é para ganhar dinheiro, é comercial; não é aquilo que eu penso...”[8] ou ainda “Eu não tenho opinião, tenho a opinião que o povo quer comprar.”[9] Além dessa atitude mercantilista assumida sem constrangimento, é preciso sublinhar outro caráter determinante de sua produção de folhetos, o da temática urbana.

De modo geral, Rodolfo Cavalcante deixou de lado a inspiração mais tradicional dos poetas de cordel: arquétipos medievais, anti-heróis como João Grilo, Cancão de Fogo e grandes figuras da história nordestina. Elegeu uma temática mais engajada na modernidade e no tempo precipitado da vida urbana. No entanto, permaneceu rigorosamente fiel à teoria poética que caracteriza o folheto. Em artigo intitulado “Como fazer versos”[10], o poeta afirma que rima, metrificação e aspecto gráfico são fatores determinantes para assegurar o sucesso de um bom folheto. Quanto ao assunto versado, qualquer tema é válido, desde que obedeça à tradição poética. Mas se a compreensão e a memorização dependem do respeito às regras formais, é difícil aceitar que o tema seja apenas um pretexto a exercitar uma virtuosidade de técnico da rima. O grande poeta popular Patativa do Assaré denuncia o perigo: “Nós temos muito versejador, mas poeta mesmo que tenha criatividade, nós não temos uma infinidade não. Agora, versejador, nós temos muitos. Eu crio tudo na minha imaginação e bato em cheio na vida real.”[11]

Sob certos aspectos, a obra de Rodolfo ilustra essa tendência a tratar a forma apenas como se ela fosse um mero invólucro, uma embalagem propícia ao bom escoamento da mercadoria. Em entrevista ao Jornal da Bahia, Rodolfo declarava em 1975:“A temática varia de acordo com o local onde se vendem os folhetos; o trovador tem que ter várias espécies deles,  pois o que vende na praça é um e na feira é outro.”[12]

Daremos a seguir dois exemplos comparativos a fim de ilustrar os vários talentos do poeta e comunicador Rodolfo C. Cavalcante.

Desde o início da carreira, escrevia biografias ou ABC biográficos[13]. Foram publicadas as biografias de Rui Barbosa, Castro Alves, Catulo da Paixão Cearense, Getúlio Vargas, e tantos outros, políticos, historiadores, jornalistas... As biografias podiam ser de encomenda ou de cortesia, mas de modo geral, tratava-se de exaltar os grandes nomes da vida nacional.

A vida do escritor Joaquim Inojosa, Salvador, 1976:

Falar das atividades

De Inojosa no MODERNISMO

É enaltecer o Ideal

E o grande Patriotismo

Deste Escritor de talento

Que merece um Monumento

Pelas lições do Civismo!

 

A vida de Assis Chateaubriand, Salvador, 1975

A obra de Assis prossegue

Em toda sua trajetória

Como Pavilhão de Luz,

Como Estandarte de Glória,

O seu nome perpetua

No Jornal, na Praça e Rua

Como exemplo em nossa História.

Seria inútil acumular as citações. Do ponto de vista estilístico, os folhetos biográficos não apresentam uma grande originalidade. As estruturas são repetitivas, as louvações hiperbólicas, com muitos efeitos de retórica que compõem um discurso empolado e enfático, cerimonioso e definitivo. O poeta se afastava assim de tudo aquilo que faz a originalidade da literatura de cordel: as surpresas da imaginação, a audácia das imagens, a espontaneidade da inspiração. A forma nos manda de volta à oralidade, mas que tipo de oralidade? O tom declamatório exigido pelo panegírico não seduziria um público de feira ou de rodoviária, esse mesmo público não iria memorizar essa história onde não acontece nada. Pois, afinal, a oralidade não é apenas performance, ela não é só versificação, rimas e ritmo, ela encontra seu verdadeiro sentido na escolha de uma temática que estabeleça uma conivência imediata e espontânea com o público. Uma conivência contemporânea da vocalidade.  Esse tipo de folheto destinava-se com certeza a uma faixa de público letrado diferente do público tradicional. Um público que sabe ler e cuja erudição apoia-se na escrita. Na mesma ocasião, o poeta firmava-se também como detentor de um saber adquirido pela leitura e não pela tradição oral.

Outro folheto a pôr em paralelo é o de gracejos ou folhetos jocosos, como os chamava Rodolfo, tais como A língua da mulher faladeira, O marido que trocou a mulher por uma TV a cores, História da mulher que passou a navalha no marido, Maria Mata Homem, a valente da Paraíba. O folheto escolhido intitula-se ABC da nova dança (Gute-Gute), 1978:

 

A dança de hoje em dia

Difere de antigamente

Quando o rapaz e a moça

De modo conveniente

Marcavam certo o compasso,

Juntando braço com braço

Muito respeitosamente.

 

Horrorosamente vê-se

A donzela e o rapaz

Pulando no mexe-mexe

Nos prazeres infernais,

O rapaz desrespeitando

Por trás da moça pulando,

- Minha filha mêxa mais!

 

Indo um baile em Pau Miúdo

Na casa de Julião

Quase morro de vergonha

Quando cheguei no salão

Uma moça me agarrou

Deu um pulo e me empurrou

Que me esparramei no chão.

 

A diferença de estilo é obvia, nas biografias reina a ênfase e a tentação da erudição, enquanto no ABC da nova dança (Gute-Gute), a linguagem é direta, descritiva, sem abstrações nem pretensão erudita. Os públicos implicados são distintos. De um lado, Rodolfo Cavalcante não deixa de ser o nordestino que conhece seu povo e sabe lhe falar; de outro lado, o poeta desenvolve uma temática que remete a um público distante do tradicional e supõe contatos freqüentes com poetas, jornalistas, intelectuais, com estruturas burocráticas ou culturais da cidade.

O outro exemplo comparativo refere-se à produção jornalística do poeta. A informação e seu tratamento divergiam, dependendo do público. Em relação ao público do interior, o poeta se preocupava mais em educar, divertir, moralizar, aconselhar, fazer chorar, rir e sonhar. Na cidade, o folheto não podia cumprir a mesma função: a concorrência dos outros meios de comunicação e a circulação maior das idéias e das palavras obrigava o poeta-jornalista da cidade a tratar a informação seguindo outros parâmetros.

Assim, o folheto A verdade sobre o divórcio apresenta-se, tanto pelo tema como pelo seu tratamento, como um folheto cuja destinação era urbana. A fonte de informações para tratar o assunto só pode ter sido os meios de comunicação como o jornal, o rádio, a televisão. O tema dirigia-se a um público urbano cujas práticas de vida familiar eram suscetíveis de transformação. Essa eventualidade era mais provável nos centros urbanos do que no sertão. A dissolução do casal supõe, ainda hoje, uma autonomia da mulher dificilmente encontrada no interior do Nordeste. O divórcio passa por cima do caráter sagrado da união ao qual o povo sertanejo é mais apegado. Enfim, o folheto em questão era sobretudo urbano, pois o poeta declarava-se a favor do divórcio. Embora o livrete não informe data de publicação, tudo leva a crer que a edição é de 1977, já que o divórcio passou a integrar o código civil após a vigência da lei 6.515 de 26 de dezembro de 1977.

A  verdade sobre o divórcio, Salvador, sem data:

Casa-se a pobre mulher

Com um tipo beberrão

Ou senão com um sadista

Sem alma, sem coração,

Vem o desquite, coitada,

Começa sendo falada

Sem a justificação.

 

Hoje a mulher brasileira

Separada do marido

É uma escrava da lei

No seu viver oprimido...               

Amando outro termina

Ter nome de concubina

E outro feio apelido.

 

Não separai...(Disse o Cristo)

O que o Senhor ajuntou.

Mas, o Divórcio jamais

A um casal separou.

Separado pelo tédio

Vem o Divórcio...o remédio

Para o lar que se acabou.

 

Rodolfo comentava: “...esse folheto é vendido mais nas capitais, porque não é folheto para o interior, embora o sertanejo que tenha esclarecimento compre, mas não é para o analfabeto porque ele nem sabe o que é divórcio.”

O folheto seguinte nos levou a duvidar da tolerância e das reivindicações libertadoras do poeta. A maneira da mulher não ter filhos (4a edição, 1976) é um folheto “informativo” que evoca a opção dos métodos anticoncepcionais, mas para condená-la através de um discurso absolutamente moralista e retrógrado. O argumento da “natureza” feminina apresenta a procriação como um dever, a finalidade da relação amorosa, por razões demográficas, religiosas e morais.

 

A mulher que não tem filhos

Raramente é bem feliz

Quando não anda doente

Toda hora se maldiz,

E como árvore sem fruto

Não mostra ela o produto

Como seu Criador quis.

Em meio a ameaças aterrorizantes sobre as “tais pílulas”, o poeta explica como se pode evitar ter filhos:

Primeira maneira é

De nenhum homem gostar,

Não querer de forma alguma

Com um varão se juntar,

Ao depois:- viva sozinha

Trancada na camarinha

Pra nenhum homem lhe olhar.

 

Nós estamos bem longe da afirmação do direito à liberdade concedido à mulher desquitada da cidade, para a qual é relativamente mais fácil contestar as regras de vida convencionais. Agora, a mulher só pode recusar a maternidade pela prática da abstenção sexual, a morte social e a reclusão. O poeta não a autoriza mais a ter outra identidade do que mãe de família ou assumir um destino outro que biológico.

Mais uma vez, o discurso varia em função do público. O folheto sobre o divórcio é para um público urbano relativamente abastado, ao qual é concedida uma certa margem de liberdade individual; o tom é de emancipação progressista. O segundo folheto é para a imensa maioria marginalizada: o direito ao desvio não é mais permitido, o tom é repressivo, autoritário ou paternalista. As normas de comportamento rígidas não autorizam mais a transgressão. É como se o poeta fizesse questão de demarcar-se de um Nordeste arcaico e parado no tempo, através de uma visão estigmatizante e distante.

Versos para o sertão ou a cidade, a feira ou a praça, folhetos de louvação ou de divertimento, de informação ou de conselho, de religião ou de política, a produção de Rodolfo Cavalcante revela não só o tino comercial e a esperteza editorial do poeta, como também  o seu  talento múltiplo, versátil, prolífico. A ambigüidade permanece, instigando a nossa reflexão em torno da dinâmica da literatura de cordel, suas contradições, tendências e mudanças ou deturpações. O texto pode revestir a forma da tradição e ao mesmo tempo perder de vista o essencial da oralidade: o jogo compartilhado, a gratuidade, a coesão social reencontrada. No entanto, o vigor do entusiasmo generoso e da abnegação idealista mantém viva, até hoje, entre nós, a memória do poeta e do líder, Rodolfo Coelho Cavalcante.

Com a palavra, o poeta:

Mulher da língua comprida

É açúcar no feijão,

É beber café com sal,

É raiva no coração...

É condutor sem trocado,

Bodegueiro no fiado,

É carro na contramão!

A Língua da Mulher Faladeira, 1976.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Marcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP : Mercado de Letras, 1999 (Histórias de Leitura).

ALMEIDA, Átila A.F. de & ALVES SOBRINHO, José. Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada. João Pessoa: Ed. Univ. UFPb. 2 vols. 1978.

ANTOLOGIA DA LITERATURA DE CORDEL. Fortaleza : Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social do Ceará. 2 vols. 1978.

CÂMARA CASCUDO, Luís da. Cinco livros do povo. 2ªed. Fac-similada. João Pessoa : Ed. Universitária UFPb. 1979.

CANTEL, Raymond. La littérature populaire brésilienne. Clément J.P.&Ria Lemaire eds., CRLA, Poitiers, 1993.

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CAVIGNAC, Julie. La littérature de colportage au Nord-Est du Brésil. De l’histoire écrite au récit oral. Paris : Ed. CNRS, 1997.

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____________ . Expedito Sebastião da Silva. São Paulo : Hedra, 2000.

____________ . Cordel. A voz do verso. Fortaleza : Museu do Ceará / Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. (Coleção Outras Histórias, 6).

LEMAIRE, Ria. « Une littérature différente » In Des conquêtes de Charlemagne au Brésil. Catálogo de exposição, sob a direção de Jean-marie Comte e Ria Lemaire. XVe Congrès International de la Société Rencesvals. Poitiers, França, 2000.

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LITERATURA POPULAR EM VERSO-ANTOLOGIA. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: USP ; Rio de Janeiro : Fundação casa de Rui Barbosa, 1986.

LITERATURA POPULAR EM VERSO-ESTUDOS. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: USP ; Rio de Janeiro: Fundação casa de Rui Barbosa, 1986.

LUYTEN, Joseph M. (org.) Bibliografia Especializada sobre Literatura Popular em Verso. São Paulo: Nosso Studio Gráfico Ltda, 2001.

SLATER, Candace. A vida no barbante : a literatura de cordekl no Brasil. Rio : Civilização Brasileira, 1984.

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___________________. Rodolfo Coelho Cavalcante. São Paulo : Hedra, 2000.

ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale. Paris : Seuil, 1983.

______________.  A letra e a voz. A literatura medieval. São Paulo : Companhia das Letras, 1993.


 


NOTES



[1] A propósito da vinculação controvertida da literatura de folhetos nordestina à literatura de cordel lusitana, ler ABREU, Marcia. História de cordéis e folhetos. Campinas, SP : Mercado de Letras, 1999  (Coleção Histórias de Leitura).

[2] SLATER, Candace. A vida no barbante. A literatura de cordel no Brasil. Rio: Civilização Brasileira, tradução de Octávio Alves Velho, 1984. p.20.

CASCUDO, Luís da Câmara : « Literatura oral ». In LINS, Álvaro. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro : José Olympio, 1952, V.6. p.155.

DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. « Ciclos temáticos na literatura de cordel ». In Literatura popular em verso : estudos. Belo Horizonte : Itatiaia ; São Paulo : Editora da Univ. de São Paulo ; Rio de Janeiro : Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.

[3] Cf. ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale. Paris : Seuil, 1983. p.80 : « Dans les cultures à rythme lent, le fonctionnement de la mémoire collective détermine le mode de structuration poétique. Le poème y  apparaît "relecture" plutôt que "création" : son ère ontologique est la tradition même qui le supporte. »

[4] « O bom folheteiro é aquele que é "bom de escrita" "bom de maleta" "bom de peito" e "bom de feira"... A força no peito para cantar é muito importante, mesmo para os que têm alto-falante. O folheteiro que não berra cantando no meio da feira, que não pára de vez em quando para explicar o "romance", que não faz um gracejo para animar uma cantoria, que não sabe dar uma "tranca" ou uma chave de venda para deixar o matuto em suspense e começar a venda do livro, é um defunto no meio da feira e volta para casa sem descolar. » Cf. MARANHÃO, Liêdo. «Cordel Agentes e Folheteiros » In Rev. Equipe. Recife, 6 (71), junho de 1974.

[5] Primeira estrofe de A criança que nasceu com duas cabeças e três braços em Pernambuco, 1969. A autoria é de Rodolfo Coelho Cavalcante.

[6] Em 1983, o escritor Eno Teodoro Wanke publicava na Folha Carioca Editora, o livro Vida e luta do trovador Rodolfo Coelho Cavalcante, biografia baseada nas narrativas do próprio Rodolfo, e que oscila entre reportagem e romance de aventuras.

[7] Em 1987, um ano depois da morte de Rodolfo, a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Editora Nova Fronteira, ambas do Rio, lançaram o livro : A presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na moderna literatura de cordel, do professor universitário Mark Curran, do Arizona, nos Estados Unidos.

[8] Cf. Rodolfo C. Cavalcante entrevistado pela autora, fevereiro de 1980, Salvador-Ba.

[9] Cf. RCC, janeiro de 1971, In LESSA, Orígenes : Getúlio Vargas na Literatura de Cordel, Rio : Documentário, 1973

[10] Cf. RCC : « Como fazer versos ? » In Correio Popular, Campinas, agosto de 1982. In : ABREU, Marcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP : Mercado de Letras, 1999. pp. 110-111.

[11] In Rev. Cult 54. Ano V. São Paulo. Janeiro de 2002. p.6. Entrevistador : Gilmar de Carvalho.

[12] Cf. RCC In RUBIM, Albino (et alii) : « Encontro com R.C.Cavalcante » In Jornal da Bahia, Salvador, 26/05/1975.

[13] O ABC é um poema cujos primeiros versos de cada estrofe começam por uma letra do alfabeto, seguindo a ordem alfabética.